O texto da reforma trabalhista aprovada no dia 11 de julho pelo Senado Federal prevê a criação de uma nova categoria de dispensa de funcionário. É a chamada “demissão consensual”, que não existia até então. Agora, companhia e empregado podem decidir juntos encerrar o contrato de trabalho. Neste novo cenário, a empresa paga mais direitos do que se o funcionário se demitisse, mas menos do que se tomasse a iniciativa de demiti-lo. Críticos da reforma dizem que o artifício pode colocar em risco as formas tradicionais de demissão, abrindo espaço para que trabalhadores sejam coagidos.
Hoje, na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), constam três formas de demissão. Em cada uma delas, o funcionário recebe verbas rescisórias diferentes. Quando a empresa o demite sem justa causa, ele leva saldo de salário, décimo terceiro proporcional, férias e aviso prévio. O trabalhador também tem direito de sacar o saldo do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) completo, com 40% de multa, e o seguro-desemprego. É o cenário em que ele ganha mais verbas rescisórias.
Se pede demissão, o profissional tem tudo mencionado anteriormente (dias trabalhados, férias, 13° salário proporcionais), exceto FGTS e seguro-desemprego. Por fim, se a empresa o demite por justa causa (recurso considerado a “pena de morte do trabalhador”), ele ganha apenas o saldo de salário daquele mês e eventuais férias vencidas. Todos os outros direitos descem pelo ralo. Com a reforma trabalhista, nada disso muda. Os três tipos de demissão “tradicionais” continuam existindo. Mas uma nova figura entra em cena.
Especialistas apontam a existência bastante frequente de acordos fraudulentos em torno das demissões atuais. Imagine a seguinte situação. O funcionário quer se demitir pois conseguiu um novo emprego, mas precisa do dinheiro do FGTS. Como tem uma boa relação com seu empregador atual, combina de ser demitido sem justa causa. Para a empresa não ficar no prejuízo, fica acordado que o funcionário devolverá os 40% de multa sobre o valor do FGTS, que a companhia é obrigada a pagar nessas demissões. Hoje, isso é bem comum no mercado de trabalho.
“Em algumas empresas, está acabando a figura do pedido de demissão”, diz a advogada Caroline Marchi, sócia da área trabalhista do escritório Machado Meyer Advogados. “O funcionário vai até o empregador, diz que não quer mais trabalhar lá e pede para ser mandado embora. Se o empregador recusa, o empregado muitas vezes começa a fazer ´corpo mole´ de forma que não fique extremamente caracterizado para uma demissão por justa causa — mas o empregador não tem mais opção e manda embora.”
A “demissão consensual”, presente no artigo 484-A da reforma trabalhista, chega para fazer frente a esse cenário. Com ela, profissionais demitidos em comum acordo com a empresa recebem, além das verbas a que teriam direito caso se demitissem normalmente, metade do valor referente ao aviso prévio, 20% da multa do FGTS e podem movimentar até 80% do saldo do fundo. O seguro-desemprego, contudo, não entra na lista. Essa mudança na lei valerá para todos os contratos atuais no Brasil a partir do momento em que entrar em vigor (120 dias após a sanção do presidente).
“Só vai funcionar quando as partes estão de comum acordo. É como um divórcio consensual — será negociado entre as partes”, diz Maria Lúcia Benhame, sócia-fundadora da Benhame Sociedade de Advogados. “Vai exigir maturidade de todo mundo. Hoje já acontece, mas em situações falsas.”
Para críticos da reforma, no entanto, o novo recurso pode colocar em risco as outras formas de demissão e até abrir espaço para que trabalhadores sejam coagidos pelas companhias. “Na prática, o que vai acontecer é que não teremos mais dispensa sem justa causa. Quando o empregador não quiser mais o trabalhador, vai colocar um papel para ele assinar e fica sendo como ´de comum acordo´”, diz a juíza Noemia Porto, vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). “É uma das consequências mais nefastas que estamos vendo [da reforma]. O empregador e o empregado não estão em condição de igualdade [para negociar].”
Outra crítica ao artigo é que seria uma tentativa de institucionalizar uma prática ilegal. “Essa demissão consensual existia? Na prática, sim. Mas era uma fraude. (…) O Congresso legalizou a fraude”, diz o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury. A forma como muitas empresas atuam, segundo ele, agora tem amparo legal.
Antônio Silva Neto, assessor jurídico do deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma trabalhista na Câmara, nega que a nova categoria de demissão possa extinguir as anteriores. “De forma alguma”, ele diz. Caso a empresa aja de maneira incorreta, o trabalhador ainda poderá reivindicar seus direitos na Justiça, defende. “As duas partes têm de concordar. Se de alguma forma o empregado for coagido, é um vício do negócio jurídico [ato anulável]. (…) A lei está acabando com uma fraude e trazendo uma negociação bilateral que já existe para a égide da lei. É uma forma de trazer segurança jurídica.”